E os valentes desarmados reagem! (por Cristovam Buarque)

O governo Bolsonaro deixará tristes marcas, a mais grave talvez seja a degradação do prestígio e da confiança do povo nos militares

E os valentes desarmados reagem! (por Cristovam Buarque)

E os valentes desarmados reagem! (por Cristovam Buarque)

O governo Bolsonaro deixará tristes marcas, a mais grave talvez seja a degradação do prestígio e da confiança do povo nos militares

Guga Noblat

atualizado 13/07/2021 0:52

Novos comandantes do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira; da Marinha, almirante de esquadra Almir Garnier Santos; e da Aeronáutica, tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista JúniorIgo Estrela/Metrópoles

Ao dizer que homem armado não ameaça, insinuando que usa logo a arma, o comandante da aeronáutica passou a ideia de que as Forças Armadas não avisariam antes de agir contra o Congresso, ou ao menos contra o senador Omar Aziz. Ao fazer isto, o comandante degradou a Aeronáutica por colocá-la ao nível de um homem armado, com faca ou revólver ameaçando um desafeto.

 

A Aeronáutica é uma força, com missão nobre: usar seus soldados, aviões e bombas para defender a Pátria contra inimigos externos. Não pode ser comparada a um homem enlouquecido por alguma raiva.

O governo Bolsonaro deixará tristes marcas – queima de florestas, descuido com a epidemia que matou mais de meio milhão de brasileiros, muitos outros equívocos e atos antipatrióticos –, mas uma das mais graves de suas marcas poderá ser a degradação do prestígio, do respeito e da confiança do povo para com suas Forças Armadas.

A eleição de Bolsonaro foi pelo voto, resultado dos erros de governos democráticos anteriores. Ele não foi imposto pelas Forças Armadas, nem mesmo era um militar desde quando foi expulso do Exército. Mas ele conseguiu comprometer as Forças Armadas ao pôr militares dentro de seu governo e expor incompetência e suspeitas, ainda não comprovadas, de corrupção por oficiais.

Durante os 21 anos do regime militar, o Brasil enfrentou a brutalidade de uma lamentável ditadura: as Forças Armadas podiam ser odiadas pelos perseguidos ou opositores, seus oficiais podiam ser temidos, mas eram respeitados pela competência e honestidade. Todos os quatro presidentes terminaram suas vidas aposentados sem riqueza.

 

Mário Andreaza fez estradas e quando aposentado teve de receber ajuda para tratar de sua saúde. Costa Calvalcanti fez Itaipu e não deixou qualquer fortuna para a família. Foram competentes, honestos e respeitados, apesar de merecerem críticas e repulsa como parte das maldades da ditadura.

O respeito e as críticas ficaram na história, quando as Forças Armadas saíram do poder em um processo de negociação com as lideranças civis. Diferentemente de outros países, no Brasil os militares entregaram o poder sem serem derrotados, ficaram como participantes do processo de democratização. Desde então, os governos eleitos, de direita, centro ou esquerda, foram respeitados pelas FFAA em um comportamento democrático exemplar. E elas receberam respeito da sociedade.

A eleição de Bolsonaro pareceu acender uma chama revanchista contra a democracia e os civis, levando as Forças Armadas a aceitarem uma simbiose com um governo incompetente que está destruindo o Brasil, florestas, ciência, saúde, democracia, direitos conquistados, isolando o país como pária e motivo de galhofas no mundo. E os militares se deixaram envolver, comprometidos e até coniventes com os erros e incompetências. Deixaram de ser Forças Armadas e passaram a ser parte do governo.

Esta simbiose começa a ameaçar a democracia ao ameaçar o Congresso e a Justiça, ainda pior, quando as Forças Armadas passam a impressão de aliar-se a setores armados, policiais, milícias e bandoleiros, para impedir o reconhecimento do resultado das eleições. A imagem que aos poucos começa a chamuscar nossas Forças Armadas poderá ser um dos piores legados do governo Bolsonaro, mas a culpa não será apenas dele. Alguns oficiais colaboraram.

 

O resultado é que as pessoas desarmadas começam a se preparar contra as ameaças insinuadas pelos armados. Depois que acabaram as ditaduras na Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia e Brasil, circulava em meios acadêmicos destes países a ideia de um pacto pela desmilitarização do continente. Alguns sonhadores imaginavam que além de continental, o pacto poderia ser transatlântico. Sem armas do outro lado das fronteiras terrestres e do oceano, seria possível a extinção das Forças Armadas em todos os países da América Latina e da África, liberando centenas de bilhões de dólares para investir em educação, ciência, tecnologia, saúde, infraestrutura e policiamento para a segurança interna, como fez Costa Rica há 70 anos.

O comportamento das Forças Armadas naqueles países apagou estas ideias utópicas. Na constituinte atual no Chile, este assunto pode surgir, sem prosperar por causa dos conflitos fronteiriços deste país com todos seus vizinhos, Peru, Bolívia e até mesmo Argentina. O Brasil não tem esses conflitos, e o desgaste que Bolsonaro provoca nas Forças Armadas pode fazer ressurgir o tema por aqui, porque homem armado não ameaça e homens e mulheres valentes desarmados reagem.

 

Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro