Dormindo com o inimigo! (Sobre a morte do maior traidor da história do PCB)

Dormindo com o inimigo! (Sobre a morte do maior traidor da história do PCB)

Dormindo com o inimigo! (Sobre a morte do maior traidor da história do PCB)

O título que atribuí a este meu depoimento está na minha cabeça desde anteontem, quando soube que ele conseguiu viver até 105 anos, apesar de tudo. Desde que Marcelo Godoy me convenceu de que o “Melinho” era o “Vinicius” nunca me esqueci dos dias que passei com ele em uma casa em São Paulo.

Dormindo com o inimigo! (Sobre a morte do maior traidor da história do PCB)

Por Ivan Pinheiro

Em artigo do jornalista Marcelo Godoy, publicado anteontem no “Estado de São Paulo”, soubemos da “morte secreta”, no ano passado, de Severino Theodoro de Mello, creio que corretamente qualificado pelo autor como “o maior espião da história dos serviços militares do Brasil”. No meu caso, prefiro qualificá-lo, além de maior espião, como o maior traidor da história do PCB.

Marcelo é o jornalista que foi mais fundo até agora nas pesquisas sobre o auge da repressão da ditadura burguesa sob a forma militar instalada no Brasil em 1964. Com base em muita pesquisa e dezenas de entrevistas com protagonistas dos dois lados em confronto (militantes comunistas, armados ou não, e membros da comunidade de repressão da ditadura), ele escreveu importante livro sobre o assunto: “A CASA DA VOVÓ: uma biografia do DOI-CODI (1969-1991), o centro de sequestro, tortura e morte da ditadura militar; histórias, documentos e depoimentos dos agentes do regime”. “Casa da Vovó” era a senha como os agentes se referiam às instalações do DOI-CODI em São Paulo.  

Tive o prazer de conhecer esse corajoso jornalista em 2015, quando eu ainda era Secretário Geral do PCB. Ele me procurara para marcar uma conversa presencial, na sede nacional do partido, no Rio de Janeiro, em que o tema insinuado por telefone era a revelação de algumas informações sensíveis e reservadas sobre as prisões, desaparecimentos e assassinatos de diversos dirigentes e militantes do PCB, em 1974, entre os quais 12 membros do Comitê Central. O jornalista aceitou minha proposta de que, devido à importância do assunto, eu convidaria para a reunião alguns companheiros da então Comissão Política Nacional do CC do partido.

Marcelo veio ao nosso encontro para informar que finalmente havia sido comprovado por ele que o “camarada” Severino Theodoro de Mello era, no nosso linguajar, um “cachorrinho” do DOI-CODI no PCB, desde o início de 1974, quando fora preso (sem que o partido soubesse) no período da ofensiva da ditadura contra o partido e aceitou a proposta de se profissionalizar como o espião remunerado ideal do aparelho de repressão no PCB: ele era, desde antes do golpe de 1964 até a cisão que resultou na criação do PPS (janeiro de 1992), membro efetivo das três principais instâncias da direção nacional do então chamado “partidão”: o Comitê Central, a Comissão Política Nacional e o Secretariado Nacional!

Na reunião, Marcelo procurava conhecer impressões sobre essa descoberta, tentando entender por que os membros do CC à época não acreditaram na denúncia, em entrevista publicada na revista Veja (novembro de 1992), de um antigo agente da repressão (Marival Chaves) de que Mello era espião do DOI-CODI desde 1974, sob o codinome “Vinicius”. Dos membros do PCB, em 2015, eu era o único que convivera com o traidor no CC e na CPN do partido, desde a conclusão do VII Congresso, em 1983, até a cisão que resultou na fundação do PPS (janeiro de 1992).

Mello era muito simpático e educado entre nós, a ponto de o chamarmos de “Melinho”. Nunca ouvi qualquer camarada desconfiar que ele fosse um profissional fiel a serviço e a soldo da ditadura. Não conheço quem, até então, mesmo depois desta entrevista na revista Veja, tenha acreditado naquela denúncia.

Percebendo minha perplexidade, Marcelo Godoy resolveu provar definitivamente a informação que viera nos dar e repercutir. Contou-nos, nesta reunião em 2015, o que descobrira pouco tempo antes e que finalmente revelou no seu importante artigo desta semana no “Estadão”. O jornalista conseguiu relatos sigilosos de vários militares, em especial de um certo Antonio Pinto, cujo codinome no DOI-CODI seria “Doutor Pirilo” e que foi o oficial do CISA (Centro de Informações da Aeronáutica) responsável pela relação com o “Vinicius”.

Marcelo Godoy conseguiu uma façanha digna de uma importante premiação na área do jornalismo investigativo: em 2015, antes de nossa reunião, ele entrevistou presencialmente “Vinicius”, na residência deste em Copacabana, com orientação do “Doutor Pirilo” para dizer a verdade, com a garantia de que a vida dupla que tivera só seria revelada após a sua morte. Na verdade, como ele se vendera à ditadura em 1974 e desde então recebia mensalmente proventos como se fora capitão reformado, a orientação do seu chefe era sempre uma ordem.  

Diante da perplexidade minha e dos camaradas que compartilharam esse encontro na sede nacional do PCB, Marcelo tirou o gravador da bolsa e nos pôs a ouvir as palavras do entrevistado por ele, perguntando-me em seguida: “Você conhece essa voz?” Confessei que a ouvira muitas vezes, como sendo do “camarada” Mello!  

Até hoje guardei esse segredo, em respeito a este exemplar jornalista. Até que, anteontem, ele o revelou e provou publicamente, divulgando foto que tirou de “Melinho/Vinicius” na própria residência do entrevistado, que pela primeira vez se assumiu para a história como “cachorrinho da ditadura”.  Certamente, em breve, conheceremos suas confissões.

O título que atribuí a este meu depoimento está na minha cabeça desde anteontem, quando soube que ele conseguiu viver até 105 anos, apesar de tudo. Desde que Marcelo Godoy me convenceu de que o “Melinho” era o “Vinicius” nunca me esqueci dos dias que passei com ele em uma casa em São Paulo, no final de 1982.

Como eu era delegado pelo Rio de Janeiro ao VII Congresso clandestino do PCB, recebi instrução do meu saudoso amigo, assistente e camarada José Raimundo de que eu tinha um “ponto” com dia e horário acertados para chegar a São Paulo, onde se realizaria o Congresso, alguns dias antes do seu início. Como esquema de segurança, meu encontro estava marcado para uma loja que vendia revistas e jornais na rodoviária de São Paulo, onde eu seria abordado por um camarada que eu reconheceria imediatamente, ao vê-lo no local. Ele tinha a tarefa de me alojar em alguma casa em São Paulo, de onde seria buscado bem cedo no dia em que o Congresso efetivamente fosse começar. Esta foi a rotina para os delegados que não moravam na capital de SP.

O meu contato na rodoviária foi um camarada com o qual, apesar de nos separarmos politicamente na cisão de janeiro de 1992, continuo mantendo relações cordiais até hoje: o também jornalista Luiz Carlos Azedo, que me levou para a casa em que eu permaneceria, onde descobri que compartilharia os aposentos com dois membros do CC, Giocondo Dias e Theodoro Mello, e mais um camarada, de quem não me lembro o nome nem as feições. Ele certamente fazia a segurança da casa, principalmente pela presença do camarada Dias, nosso então Secretário Geral.

Até que chegasse a hora de partirmos para o local do Congresso, Giocondo Dias dormiu em um quarto separado e eu em outro, compartilhado com o inimigo que eu chamava fraternalmente de “Melinho”, mas que na realidade era o “Vinicius”, o único dos cerca de 80 delegados que sabia de cor e salteado o que iria acontecer alguns dias depois: enquanto Giocondo Dias abria o Congresso com saudações e informes, ainda de pé, cerca de trinta policiais entraram no auditório, gritando e empunhando suas armas, e nos conduziram em ônibus para a sede da Polícia Federal, de onde fomos liberados aos poucos, depois de fichados e de prestarmos depoimentos.

Celebração do centenário de Giocondo Dias, no Rio de Janeiro, em novembro de 2013, que reuniu ex-membros do CC anterior à cisão de janeiro de 1992. Com exceção de Zuleide Faria de Melo e eu, todos os demais que aparecem na foto ficaram no PPS. “Mello e/ou Vinicius” é o terceiro à esquerda do orador, Luiz Carlos Azedo.

Confesso que, desde esse encontro com Marcelo Godoy, em 2015, pensei e conversei comigo mesmo sobre muitos planos mirabolantes para fazer com que “Vinicius” pagasse pelas prisões, desaparecimentos e mortes de muitos de nossos camaradas.

Felizmente, o bom senso prevaleceu. A vida de um verme como esse não valia mais nada. Seu justiçamento não compensaria o risco de perder a liberdade, nem um dia sequer, que vale muito para os que queremos construir um mundo sem classes, sem fronteiras e sem guerras, onde todos nos possamos chamar de camaradas!

Rio de Janeiro, 13 de março de 2024