Com João Goulart fora de Brasília, senador e STF legitimaram golpe militar

Com João Goulart fora de Brasília, senador e STF legitimaram golpe militar

31 DE MARÇO

Com João Goulart fora de Brasília, senador e STF legitimaram golpe militar

Jango passou poucas horas na capital, onde, logo depois, presidente do Senado declarou vacância do cargo, mesmo com presidente da República no país

Por Renato Alves

 

 

João Goulart foi tirado da Presidência em meio a um golpe militarJoão Goulart foi tirado da Presidência em meio a um golpe militarFoto: Fundação João Goulart

 

BRASÍLIA – Com apenas quatro anos, Brasília, a capital construída a partir do desejo de trazer ares de modernidade e unidade ao país, com suas largas avenidas e edifícios monumentais, além de rodovias ligando as regiões Sul e Sudeste ao restante do Brasil, assistiu quase inerte ao golpe militar deflagrado na noite do dia 31 de março de 1964.

Naquele dia, enquanto João Goulart, o Jango, despachava no gabinete do Palácio das Laranjeiras, na Guanabara (atual Estado do Rio de Janeiro), um general lotado em Minas Gerais, Olympio Mourão Filho, antecipava o movimento previsto inicialmente pelas Forças Armadas para 2 de abril e colocou suas tropas em direção à antiga capital.

“Eu estava de pijama e roupão de seda vermelho. Posso dizer com orgulho de originalidade: creio ter sido o único homem no mundo que desencadeou uma revolução de pijama”, anotou o general em seu diário. No Rio, o general Antonio Carlos Muricy recebeu a senha de Mourão para se dirigir a Juiz de Fora: “começou a brincadeira”.

Às 4h de 31 de março, o comboio de militares começou a se preparar para tomar vários pontos entre a cidade mineira e o Rio de Janeiro. No início da manhã, parte das tropas estavam na estrada.  

Já em Brasília, por volta das 9h, o aeroporto foi fechado por militares golpistas. No meio da tarde, o prédio do Ministério da Guerra se dividia entre golpistas, que controlavam do 5º ao 8º andar, e legalistas, nos andares acima e abaixo.

Militares também se movimentavam no Rio. O Palácio das Laranjeiras foi cercado por legalistas. Já oficiais golpistas, como Castelo Branco e Costa e Silva, foram se esconder, para escapar da prisão por conspiração e traição. 

Chefe da Casa Militar, o general Assis Brasil garantiu a Jango que os rebeldes seriam logo sufocados. Disse ter um “dispositivo militar” pronto para resistir. Mas logo Jango percebeu o blefe. Acuado, dizia não querer “derramamento de sangue”. Com isso, não deu uma ordem para comandantes das forças armarem as tropas contra os rebeldes.

Jango não seguiu conselhos de JK

No fim da tarde de 31 de março, o senador mineiro Juscelino Kubitschek, que já havia sido presidente do Brasil, divulgou uma nota afirmando que “a legalidade está onde estão a disciplina e a hierarquia”. Em seguida, por volta das 17h, ele foi recebido por Jango no Palácio das Laranjeiras. 

JK deu uma conselhos para evitar o golpe. Sugeriu a Jango fazer um pronunciamento conciliador para, entre outras coisas, deixar claro que repudiava o comunismo e garantia a anistia aos militares sublevados. JK também propôs a nomeação de um novo ministério, de caráter conservador.

“Eu não posso fazer isso. Se fizer isso dou uma demonstração de medo e um homem que tem medo não pode governar o país”, respondeu Jango, segundo JK. “Esse movimento que explodiu em Minas será debelado prontamente, esse manifesto do Mourão, será destruído pelas tropas fiéis ao governo. Amanhã tudo isso estará terminado”, emendou o presidente.

Jango distribui aos repórteres presentes no Palácio das Laranjeiras um texto intitulado “Comunicado do Presidente da República”. A nota informava que o Ministério da Guerra havia enviado tropas do I Exército para acabar com a rebelião. 

Ministro da Guerra, o general Jair Dantas Ribeiro contactou o comandante do I Exército, general Armando de Moraes Âncora, e distribuiu uma nota aos comandantes dos quatro Exércitos declarando que a ordem seria restabelecida “a qualquer preço”. 

A primeira-dama Maria Thereza Goulart telefonou para o número do Palácio Laranjeiras. Ela, que estava na Granja do Torto, a residência de campo da Presidência em Brasília, disse temer o golpe. Pediu ao marido que voltasse para a capital federal.

Por volta das 22h, o líder das tropas paulistas, Amaury Kruel, ligou para Jango e exigiu a demissão de seus ministros de esquerda. O oficial já havia feito dois contatos com o presidente, com os mesmos apelos, dizendo que essa era a posição dos generais.

“General, eu não abandono os meus amigos. Se essas são as suas condições, eu não as examino. Prefiro ficar com as minhas origens. O senhor que fique com as suas convicções. Ponha as tropas na rua e traia abertamente”, respondeu Jango. Quartéis do Rio e de São Paulo aderiram ao golpe, com aval do governo norte-americano, por meio do seu  embaixador no Brasil, Lincoln Gordon.  

Anos depois, a Comissão da Verdade teria testemunhos e provas de que alguns receberam dinheiro de empresários para abandonar o presidente. Já documentos do governo dos Estados Unidos mostrariam o financiamento de desestabilização do governo Jango e fortalecimento de seus adversários, principalmente militares.

Rubens Paiva discursou a favor de Jango, que voou para Brasília

Em apoio a Jango atuava uma cadeia de rádios formada pela Nacional, Mayrink Veiga, Continental e MEC, na madrugada de 31 de março para  1º de abril. O então presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), José Serra, defendeu o governo na Rádio Nacional. Outro foi o deputado federal Rubens Paiva, representante de São Paulo.

“Está lançado para todo o país o desafio: de um lado, a maioria do povo brasileiro desejando as reformas e que a riqueza se distribua, os outros são os golpistas que devem ser repelidos”, afirmou Paiva. Com o golpe, ele foi cassado, preso e assassinado. História contada em Ainda Estou Aqui, o filme vencedor do Oscar.

Na manhã de 1º de abril, Jango foi informado que o governo dos EUA reconheceria quem o derrubasse. Seu ministro da Guerra se demitiu. Alertado que estava para ser preso, ele voou para Brasília no início da tarde. A partida do Rio levou à desmobilização das forças legalistas e ao fortalecimento das tropas golpistas.

Ainda na cidade do Rio, estudantes a favor de Jango foram espancados nas ruas, o prédio da UNE foi incendiado e a Federação Nacional dos Estivadores, dos Marítimos e outras organizações sindicais acabaram tomadas pelas forças golpistas. A Rádio Nacional saiu do ar.

Jango chegou à Brasília por volta das 15h30. Reuniu seus homens de confiança no Palácio do Planalto, onde ficaram pouco tempo, o suficiente para o presidente pegar alguns documentos e falar com quatro jornalistas. De lá, Jango e seus aliados, entre eles Tancredo Neves, líder do governo na Câmara, seguiram para a Granja do Torto. 

Na residência de campo, discutiram se ele deveria permanecer na cidade e montar resistência ou seguir ao Rio Grande do Sul. Brasília tinha a vantagem da legitimidade da sede de poder, diziam alguns. Mas lá estava isolado, longe do apoio popular, alegavam outros. 

O presidente pediu que fosse redigida uma declaração à população, garantindo que lutaria “sem tréguas para defender o povo contra as arremetidas da prepotência do poder econômico” e denunciava “as forças reacionárias que atacavam as instituições democráticas e a libertação econômica da pátria”.

Para evitar prisão, Jango voou em avião pequeno e em rota alternativa

Por volta das 18h, o golpista Castello Branco foi considerado novo ministro do Exército. Jango decidiu rumar para o Rio Grande do Sul, mas havia o medo do avião presidencial ser interceptado pela Força Aérea Brasileira (FAB). Havia informações de que se a aeronave passasse sobre São Paulo seria abatida. 

Por isso, a viagem deveria ser num Coronado (Convair 990) da Varig, usado para voos comerciais, mas o avião teve uma pane – houve suspeita de sabotagem. Estavam no aeroporto, acompanhando Jango e familiares, Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil, e o deputado federal Waldir Pires, que havia sido ministro do Trabalho de Jango.

A viagem atrasou e foi feita num bimotor da Presidência, que decolou por volta das 23h30. O pequeno avião seguiu para a capital gaúcha em baixa altitude e por uma rota alternativa: Mato Grosso, passando pelo Paraguai e entrando no Rio Grande do Sul pela fronteira oeste.

Jango levou cinco horas para chegar a Porto Alegre. O bimotor pousou na capital gaúcha às 4h de 2 de abril, contava com os apoios do então deputado federal Leonel Brizola, operários e III Exército para uma resistência. Mas a Polícia Militar foi leal ao governador Ildo Meneghetti, um golpista.

‘Canalha! Canalha! Canalha!’, gritou Tancredo na Câmara

Pouco antes da meia-noite de 1º de abril, o presidente do Senado e do Congresso, Auro de Moura Andrade, convocou uma reunião extraordinária no plenário da Câmara dos Deputados. Ele decretou a vacância do cargo de presidente da República, sob a justificativa de que Jango havia abandonado o país. 

Auro de Moura, que chegara ao cargo indicado por Jango, ignorou ofício levado por Darcy Ribeiro comunicando que o presidente se deslocara para a capital gaúcha, onde montaria seu gabinete, apoiado pelas tropas legalistas.

“Declaro vaga a presidência da República e, nos termos da Constituição, invisto no cargo o Presidente da Câmara, Sr. Ranieri Mazzilli. Está encerrada a sessão!”, declarou Auro de Moura. “Canalha! Canalha! Canalha!”, gritou Tancredo Neves, quando a sessão foi dada como encerrada.

Já no início da madrugada de 2 de abril de 1964, Mazzilli tomou posse no Planalto. A atitude legitimava o golpe. O Judiciário deu seu aval pelo comparecimento do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Álvaro Moutinho da Costa, à posse. Ele era filho de general e irmão de coronéis.

Mas o poder estava de fato com o Comando Supremo da Revolução. Compunha esse comando o general Costa e Silva, o almirante Augusto Rademaker Grünewald e o brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo. 

Em 9 de abril, o Comando  declarou o Ato Institucional n° 1, o AI-1, que antecipou as eleições presidenciais e suspendeu por 10 anos os direitos políticos dos cidadãos vistos como opositores ao regime, entre eles congressistas, militares e governadores.

O (AI-1) também proibiu o Judiciário de analisar questionamentos contra a cassação de mandatos e a suspensão de direitos políticos, e esclareceu que a “revolução” poderia ter dissolvido o Congresso e abolido a Constituição, mas escolheu preservá-los com ressalvas, limitando seus poderes, que seriam diminuídos mais com outros atos.

Dez dias após a posse de Mazzilli, os congressistas elegeram o general Castelo Branco presidente da República. Com a posse dele, em 15 de abril, o Comando Supremo encerrou suas atividades.

Com a decretação do AI-2, o STF teve sua composição ampliada de 11 para 16 magistrados um ano após o golpe. Assim, os militares garantiram maioria a favor do governo, usando o Supremo para legitimar as normas criadas pelo regime ditatorial. 

Manifestações nas ruas foram rapidamente sufocadas 

Já João Goulart, ainda na manhã de 2 de abril, foi comunicado que tropas de Curitiba marchavam sobre Porto Alegre. Ele teria duas horas para deixar o país se não quisesse ser preso. 

Jango entrou em um avião da Varig pertencente à FAB. Voou para a Fazenda Rancho Grande, uma das suas estâncias em São Borja, onde já estavam Maria Thereza e seus filhos. Jango decidiu ir para o exílio no Uruguai. 

Em uma folha de caderno escolar, o presidente escreveu uma carta ao governo uruguaio pedindo asilo. O destinatário era seu amigo João Mintegui, adido comercial da Embaixada do Brasil em Montevidéu. O texto foi entregue ao piloto que levaria a família de Jango ao Uruguai.

Jango datou a carta de 4 de abril, mas, segundo o filho de Mintegui, ela foi escrita no dia 3. Seu avião decolou de São Borja para Montevidéu em 3 de abril. Chegou ao exílio no dia seguinte. 

João Goulart nunca renunciou oficialmente ao cargo, mas a mudança para o Uruguai sacramentou a renúncia. Assim como muitos dos seus aliados, acreditava que logo haveria um novo governo civil. Estavam errados. 

Assim como em outras grandes cidades do país, o povo foi às ruas em Brasília contra o golpe. Um grupo tentou fazer manifestações na avenida W3 Sul, então principal centro comercial da nova capital, nos dias 2 e 3 de abril. 

Mas, assim como ocorreu na Cinelândia, no Rio de Janeiro, no centro do Recife, em Pernambuco, e em Porto Alegre, os militares reprimiram os atos, com porretes, bombas e prisões.