Afeganistão e a fantasia de democracia Ocidental

EUA em fuga do Afaganistão

Afeganistão e a fantasia de democracia Ocidental

Afeganistão e a fantasia de democracia Ocidental

Ao longo de 20 anos de ocupação, EUA se aliou a velhas figuras corruptas e senhores da guerra para governar o país. Talibã se fortaleceu neste vazio de alternativas. No devaneio de criar uma “Suécia com areia”, povo afegão foi excluído das decisões

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GEOPOLÍTICA & GUERRA

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Por Ian Sinclair, no The Morning Star, com tradução na Revista Opera

À medida que o Talibã cercava Cabul, em meados de agosto, o correspondente-chefe do Canal 4 da Inglaterra, Alex Thomson, observou em seu Twitter que o Ocidente esteve “obcecado com a ideia de transformar o Afeganistão em uma Suécia com areia, fetichizando a democracia e educando as mulheres”, mas “os afegãos fora de Cabul continuavam a me dizer que o Talibã acabou com a corrupção e trouxe segurança, coisas que querem antes de qualquer coisa e acima de tudo”.

A ideia de que Ocidente está sinceramente interessado em propagar a democracia no Afeganistão é uma crença em todo o amplo espectro político.

Por exemplo, em uma sessão recente da Casa dos Comuns dedicada à crise afegã, o brilhante parlamentar trabalhista Zarah Sultana fez um aviso: “O Ocidente não pode construir democracias liberais com bombas e balas”. Isso, ela disse, era uma “fantasia perigosa produzida por fanáticos neoconservadores em Washington e defendida por seus leais seguidores em Londres.”

Certamente, os governos dos EUA e da Inglaterra e seus apoiadores na imprensa costumam afirmar intenções benignas. No entanto, se levarmos a sério o dito do escritor uruguaio Eduardo Galeano de que “no geral, as palavras usadas pelo poder não são usadas para expressar suas ações, mas para escondê-las”, se torna fundamental considerar as ações do Ocidente no Afeganistão, ao invés de suas declarações públicas.

O que demonstra o histórico, então?

Após a invasão liderada pelos EUA ao Afeganistão, em 7 de outubro de 2001, o The New York Times reportou, em dezembro daquele ano, que a campanha militar tinha “trazido de volta ao poder quase todos os mesmos senhores de guerra que vinham governando mal o país antes do Talibã”. Hamid Karzai, “antes uma figura pouco conhecida nacionalmente que não controla nenhum exército de verdade nem tem controle territorial […] foi escolhido a dedo pelos Estados Unidos” para chefiar o governo interino.

Karzai foi instalado no palácio no começo de dezembro de 2001, durante um encontro de figuras chave da vida afegã em Bonn, na Alemanha. “A conferência de Bonn foi só pelo espetáculo”, disse Haji Attaullah, um delegado pachtun, ao The New York Times. “As decisões já tinham sido feitas previamente”.

Em seu livro de 2006, Bleeding Afghanistan (Sangrando o Afeganistão, em tradução-livre), Sonali Kolhatkar e James Ingalls concordam, argumentando: “Essa nova ‘democracia’ afegã não foi em última instância moldada pelos afegãos comuns, mas pelos EUA e seu agente, Zalmay Khalilzad”.

Nascido no Afeganistão e acolhido no establishment da política externa norte-americana desde o final dos anos 1970, Khalilzad foi apontado como enviado especial presidencial dos Estados Unidos ao Afeganistão em dezembro de 2001. Depois, de novembro de 2003 até junho de 2005, ele serviu como embaixador norte-americano no Afeganistão.

“Nenhuma grande decisão do governo afegão foi feita sem seu envolvimento”, dizia uma reportagem da BBC de 2005. “Ele já foi apelidado de vice-rei, ou como verdadeiro presidente do Afeganistão”. Seu trabalho, explicou o The New York Times em 2004 sem um pingo de autoconsciência, era “garantir que os elementos amigáveis à América ganhassem ascendência em um Afeganistão democrático”.

O próprio Karzai venceu duas eleições presidenciais duvidosas em 2004 e 2009 – exercícios talvez melhor descritos como “eleições de demonstração”, que Edward Herman definiu em 1992 como “a arte de organizar eleições em estados clientes do Terceiro Mundo como um meio de garantir à população doméstica que um processo de intervenção dos EUA é meritório e serve a um propósito mais elevado.”

Em 2013, o The New York Times reportava: “Por mais de uma década, maços de dólares americanos embalados em malas, mochilas e, ocasionalmente, sacolas plásticas foram deixados todos os meses ou mais nos escritórios do presidente do Afeganistão – cortesia da Agência de Inteligência Central, a CIA.” Khalil Roman, vice-chefe de gabinete de Karzai de 2002 a 2005, disse: “Vinha em segredo e saia em segredo.”

The New York Times observou que algumas autoridades americanas disseram ao jornal que “o dinheiro alimentou a corrupção e deu poder aos senhores da guerra”. De fato, de acordo com uma autoridade dos EUA, “a maior fonte de corrupção no Afeganistão foram os Estados Unidos”.

Sem dúvida, os suecos que lerem tudo isso reconhecerão as semelhanças com o sistema político de seu próprio país.

As injuriosas operações noturnas de morte e captura (ataques noturnos) conduzidas pelas Forças Especiais dos EUA oferecem outra janela para a posição real do Ocidente sobre a democracia no Afeganistão. Em fevereiro de 2009, um telegrama diplomático dos EUA vazado mostrou Karzai pedindo ao subsecretário de política de defesa dos EUA um limite para os ataques. 

Karzai, ao que parece, foi ignorado, com um estudo da Open Society Foundations de 2011 observando um aumento de cinco vezes nos ataques entre fevereiro de 2009 e dezembro de 2010, com um total de 1.700 ataques entre dezembro de 2010 e fevereiro de 2011. Um acordo foi finalmente negociado entre Karzai e os EUA em abril de 2012 para transferir o controle dos ataques noturnos ao governo afegão.

No entanto, a revista Atlantic explicou que o acordo “parece oferecer a Karzai uma linha de aplausos para discursos, em vez de mudanças significativas na forma como os ataques são realizados”.

Os ataques noturnos – e as mortes extrajudiciais e abusos dos direitos humanos que ocorreram durante eles – continuaram, embora agora nominalmente liderados pelas forças afegãs.

Com o presidente afegão talvez se tornando um pouco independente demais para o gosto dos EUA, o The Guardian relatou em 2014 que os EUA tentaram intervir nas eleições afegãs. Citando as memórias do secretário de defesa dos Estados Unidos, Robert Gates, o jornal notou: “Os principais diplomatas dos Estados Unidos concordavam em atrasar uma eleição presidencial afegã em 2009 e, em seguida, tentaram manipular o resultado em um ‘golpe desajeitado e fracassado’” que visava derrubar Karzai.

Além de tudo isso, qualquer resumo do papel do Ocidente no Afeganistão deve incluir o centro de tortura na base aérea de Bagram e os milhares de afegãos mortos em ataques aéreos realizados pelos EUA, Grã-Bretanha e seus aliados (nos últimos cinco anos 40% de todas as vítimas civis de ataques aéreos eram crianças, de acordo com dados da ONU).

Em declarações ao jornalista Sandy Gall, o general David Richards, ex-chefe do Estado-Maior de Defesa britânico, disse que no estágio inicial do deslocamento britânico para a província afegã de Hilmande “acabamos matando muitas pessoas, destruindo muitos bazares e mesquitas”.

E as milícias armadas rondando o país? Reportando do Afeganistão, em julho, Emma Graham-Harrison do The Guardian fez a surpreendente afirmação de que as autoridades afegãs “estão abraçando as milícias, após anos de esforços apoiados pelo Ocidente para desarmar os bandos não oficiais de homens armados do país”. A verdade é o oposto: um estudo de 2019 do Instituto Watson para Assuntos Internacionais e Públicos da Brown University observou: “A CIA ainda mantém milícias locais em operações contra o Talibã e outros militantes islâmicos”. O estudo prossegue observando: “As milícias supostamente cometeram graves abusos de direitos humanos, incluindo numerosos assassinatos extrajudiciais de civis” e “o patrocínio da CIA garante que suas operações sejam encobertas pelo sigilo. Praticamente não há supervisão pública de suas atividades ou prestação de contas.”

Como David Wearing, professor de relações internacionais na Royal Holloway, Universidade de Londres, escreveu em um artigo do The Guardian em 2013: “A ideia de que o envolvimento do Estado britânico no Afeganistão foi devido a algum compromisso de princípios com a democracia e os direitos humanos é algo que mal passa no teste do riso.”

Patricia Gossman, diretora associada da divisão da Ásia da Human Rights Watch, ecoou a análise de Wearing em maio: “Os Estados Unidos, desde 2001, subordinaram consistentemente os direitos humanos e a boa governança a objetivos políticos de curto prazo, fazendo parcerias e financiando senhores da guerra afegãos que usaram seus novos poderes para alvejar não apenas o Talibã, mas também os rivais locais”.

A Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão colocou o argumento com mais força no 12º aniversário da invasão de 2001: “O governo dos Estados Unidos e seus aliados prometeram democracia ao nosso povo, mas impuseram a eles o governo mais antidemocrático, corrupto e mafioso de nossa história”.

Em vez de uma “Suécia com areia”, as evidências sugerem que o objetivo principal do Ocidente tem sido a criação de um estado cliente no Afeganistão – “um governo aliado política e militarmente em um país estrategicamente importante”, explica Wearing. Nada disso será uma surpresa para aqueles que são observadores atentos da política externa ocidental.

Jane Kinninmont, vice-chefe do programa do Oriente Médio e do Norte da África do think tank Chatham House, em 2013, forneceu o contexto principal: “A longa história do envolvimento das grandes potências anglo-americanas no Oriente Médio […] em sua maioria, não envolveu um esforço para democratizar a região.”

“Em vez disso, a tendência geral tem sido apoiar governantes autoritários que já estavam no poder ou participar da consolidação ativa do controle autoritário, incluindo forte cooperação militar e de inteligência, desde que esses governantes sejam vistos como apoiadores mais fortes dos interesses ocidentais do que governos eleitos pelo povo seriam.”

 

Promoção da democracia ocidental no Afeganistão? Parafraseando Gandhi: seria uma boa ideia.