O tesoureiro que tesourava

O tesoureiro que tesourava

O tesoureiro que tesourava

Monica De Bolle

Se o tesoureiro não sabe qual o risco fiscal, como vai explicar a taxa de juros? Esse conto não traz a resposta.

 
   

O tesoureiro levantou-se cedo, mais do que o habitual. Seria aquele um grande dia, não no sentido de glórias conquistadas ou louvores a colher. O dia seria grande porque não é todo dia que se enfrenta o precipício. Mais do que isso, não é todo dia que se enfrenta o precipício sabendo de antemão que em sua beirada estaria, quisesse ou não. Aceitara o desafio porque, como tesoureiro que tesourava, qualquer corte lhe era acessível. Corte de palavra, corte de pergunta, corte como resposta que interrompesse um questionamento incoveniente, corte de terno, corte de gravata. A gravata bem aprumada, de marca chique pois, afinal, era ele o tesoureiro.

O tesoureiro passou as horas se preparando para o enfrentamento. Assistiu entrevistas, leu alguns artigos de jornais — jamais fora muito afeito à leitura acadêmica — fez anotações em seu caderninho. Munido do caderninho, partiu para o que seria inevitavelmente o cadafalso. Cadafalso, piso em falso. Piso em falso ter aceito aquela entrevista. No caminho para o cadafalso que ainda não reconhecera como nada, menos ainda como o precipício, atenção ao chão não prestava. Escapou-lhe aquilo que não escapara ao prisioneiro cujo destino fora selado e que George Orwell, em um de seus mais magníficos ensaios, observara. O desvio da poça para não sujar os sapatos. O tesoureiro sujou os sapatos já na trilha do precipício e antes de alcançá-lo quando, com fala entrecortada, respiração ofegante, e postura corporal reveladora, entregou sua ansiedade aos olhos dos espectadores. Espectadores atentos a cada detalhe. Espectadores Orwellianos.

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Já na beira do precipício, respirou fundo e lembrou de seu caderninho. Ali estava, pronto para lhe sussurrar as palavras. As palavras que preparara cuidadosamente, mas cuja cadência já não lembrava. Escorregou nas palavras e quase tombou, mas conseguiu ainda segurar-se numa gramática titubeante. Contudo, não duraria aquele alívio.

Perguntado repetidas vezes sobre o fiscal, o risco fiscal, onde estava o risco fiscal, de que tamanho era o risco fiscal, porque tanto falava no risco fiscal, veio o eco. Precipícios costumam ter ecos. Fiscal, dizia o precipício. Fiscal, insistia o precipício. Fiscal, lhe assombrava o precipício. Nada havia no caderninho sobre o risco fiscal, a não ser platitudes que esperava o tesoureiro ansioso serem suficientes. Não sabia o tesoureiro que o precipício era insistente na sua condição de abismo. Ribanceiras acentuadas não gostam de ser planícies. Mas, o que sabia o tesoureiro de ribanceiras? Vivera ele até aquele momento insulado dos acontecimentos à sua volta, protegido pelos discursos repetitivos ainda que falaciosos, apartado das mazelas de seu País. No caderninho havia anotado as palavras soltas “pobreza", “agenda social”, “preocupação”, “nossa”. Emendou uma na outra e construiu algo como “Nossa preocupação com a agenda social". O risco fiscal, entretanto, não lhe abandonara.

Nesse momento, tomou a decisão que selaria aquele dia. O tesoureiro que tentava desesperadamente tesourar o precipício do seu desconhecimento optou pela libertação. Com sua tesoura, cortou a última amarra que prendia seus pensamentos e os articulava, ainda que de modo insuficiente. Foi-se o balão a flutuar acima do precipício carregando os pensamentos. Não se dera conta o tesoureiro de que sem os pensamentos, o caderninho não faria sentido. E assim foi. Veio o palavrório desconexo para explicar o risco fiscal.

Quem ouviu no calor daquele momento, nada entendeu. Quem ouviu com mais atenção, entendeu ainda menos. O tesoureiro que tesourava havia tesourado a sua última — única (?) — oportunidade de parecer convincente. Já não conseguira explicar a camisa amarela, tampouco as amizades de zap zap. Mas, o risco fiscal era o mais fundamental. Sem ele, como haveria de alimentar seus defensores?

Aflito e desconcertado fez então o único gesto que lhe restava. Pôs a mão na cabeça, respirou fundo. Considerou os prós e os contras. Abriram-se duas linhas do tempo. Em uma delas, o tesoureiro que tesourava se lançou no abismo para alcançar seus pensamentos. Na outra, continuou de pé na beirada do precipício esperando que o tempo lhe trouxesse alguma resposta. A Resposta.

A Pergunta? Qual é o risco fiscal do Brasil?

Os ecos do precipício não cessaram.

 

*A imagem desse artigo foi feita utilizando a ferramenta DALL.E