Esquerdas nas eleições: um balanço de olho no futuro
Roberto Amaral
As projeções pessimistas sobre o desempenho eleitoral da esquerda orgânica, lamentavelmente, se confirmaram. Não logramos eleger prefeitos de capitais no primeiro turno, disputaremos o segundo em apenas cinco capitais, e, o que não é pouco, perdemos espaços em estados decisivos da política nacional, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, que reúnem cerca de 59 milhões de eleitores, em um universo em torno de 147 milhões, dados da última eleição.
A primeira leitura política dos números oferecidos pelas eleições do dia 15 sugere a emergência da direita tradicional se desapartando da extrema-direita (a que se aliara em 2018, conduzindo-a ao poder), e a primeira resultante desse realinhamento de peças implicou uma aparente fragilização do bolsonarismo, a qual, todavia, não terá repercussão no apoio parlamentar, que permanecerá sólido, embora que caríssimo aos cofres públicos.
O bolsonarismo-raiz perdeu, política e eleitoralmente, para um conglomerado que a crônica costuma identificar como “centrão” (craca do estado patrimonial), conjunto de siglas e de projetos que caminham da direita clássica a uma centro-direita que admite o debate democrático, no que se separa da extrema-direita. Um conglomerado que vai de Kassab a ACM Neto e Rodrigo Maia, e sempre disposto a negociar. Embora seja um corpo sem forma que pula de qualquer barco que comece a fazer água, integra a base de apoio do capitão mal servido de ética, mesmo sem ser bolsonarismo-raiz.
De todos os candidatos ungidos ou abençoados pelo planalto e pelas inumeráveis assembleias de deus, nas capitais, chegam ao segundo turno, sem o bafejo do favoritismo, apenas os candidatos às prefeituras de Fortaleza e do Rio de Janeiro. É pouco para um presidente em plena campanha pela reeleição, e para um neopentecostalismo capilarizado em todo o país. De outra parte, a esquerda disputará o segundo turno em cinco capitais: Porto Alegre, Vitória, Recife, Belém e São Paulo. Fora dessas capitais, o cenário é ocupado ou por prefeitos eleitos ou por disputas de segundo turno cingidas ao campo da direita: podemos, republicanos, pp, psd et caterva.
Perdedora nos grandes números, e no debate político, que não conseguiu nacionalizar, a esquerda, no seu mais largo significado, paga o preço pelos reincidentes erros táticos e estratégicos cometidos pelos aparelhos diretivos burocratizados. Grita pedindo explicação o desaparecimento da esquerda, já no primeiro turno, em pleitos como os de Salvador e Belo Horizonte, terceira e quarta maiores cidades do país. O que não foi diferente no sul no centro-oeste, no norte e no nordeste. É chocante a esquerda não haver tido competência para afirmar-se politicamente nas eleições do Rio de Janeiro.
O pleito na capital fluminense, no primeiro turno, é paradigmático, com três candidatos do campo democrático disputando entre si a vaga no segundo turno. Como era de se esperar, a autofagia (fermentada por disputas pessoais) abriu passagem para o rejeitado candidato do bolsonarismo, o ainda prefeito Crivella, cuja votação foi inferior à soma dos votos obtidos pelas três candidatas do campo progressista. Que nem assim alavancaram a formação de suas bancadas no legislativo municipal. Apenas deu sopro de vida ao bolsonarismo. Divisão similar ensejou, em Fortaleza, o passaporte do capitão Wagner, candidato de Bolsonaro, para o segundo turno, ameaçando a hegemonia do campo popular. Sobrevivemos, porém - isto é, vamos para o segundo turno-- , em Porto Alegre e em Belém - cidades nas quais o PT teve o bom senso de não impor seu hegemonismo, e ceder a cabeça de chapa a líderes de outros partidos, Manuela D'Ávila (PCdoB) e Edmilson Rodrigues.
É indispensável colhermos lições das consequências de nossos erros. Saberemos, ademais, aprender com as experiências vitoriosas da política de alianças?
Em meio a tantos enganos e erros estratégicos, a exceção que confirma a regra é oferecida pela eleição em São Paulo. Na mais importante capital do país, os partidos de esquerda lançaram candidaturas próprias - para fazer o quê, não se sabe. Proselitismo político não foi, pois os candidatos, no geral, fugiram ao debate ideológico, perseguindo quimeras eleitorais. Mas o povo é mais sábio do que os aparelhos burocráticos: a militância e o eleitorado compreenderam a burla em construção e decidiram fazer elas, nas bases, a frente que as direções partidárias negavam nos entendimentos de cúpula.
O sucesso da candidatura Boulos-Erundina deriva dessa sabedoria que acompanha as massas. E é dessa vitória que cuidamos.
A passagem de Boulos-Erundina para o segundo turno das eleições paulistanas, derrotando o bolsonarismo, é uma vitória tanto eleitoral quanto política. Eleitoral pelo fato em si, e pela perspectiva de vitória que é justo nutrir, sem nenhum baluartismo. É, também, uma conquista política, pelo discurso do candidato e pelo significado de sua afirmação, a partir de agora, seja qual for o resultado do segundo turno. Consolida-se a construção de um novo e promissor quadro político popular nacional, em condições de suprir os vácuos e as deficiências do cenário de nossos dias.
A possível conquista da cidade de São Paulo será fenômeno cuja importância dispensa demonstração. A emergência de uma nova e ao mesmo tempo já experimentada liderança, oriunda como Lula do movimento popular, é certamente o fato político mais relevante desde as eleições de 2014, pois não lhe faltam condições para contribuir para a reordenação do campo democrático e progressista. A eleição de Boulos alterará a correlação de forças de hoje e implicará mudança de qualidade na luta política contra o bolsonarismo, o adversário do momento presente. Ao mesmo tempo, abrirá novas perspectivas para a campanha do impeachment e as eleições de 2022.
O jogo político e as circunstâncias postas pelo processo social exigem, de cada militante, a distinção entre o essencial e o acessório, o aparente e o real, o tático e o estratégico. Dessa leitura, derivam as chamadas “políticas justas”, as que adequam o real ao sonho. Sem perder a perspectiva de futuro, nossos projetos de país e sociedade, precisamos entender que, com todas as dificuldades, o processo eleitoral em curso pode desenhar, a partir de São Paulo, um novo cenário político menos estreito que o atual, que condicionou as esquerdas ao posto de mera resistência, ou de “recuo tático” como preferem algumas organizações. O movimento seguinte, a retomada do protagonismo pelas forças populares, se apresentará como consequência da política de alianças e frente (ampliadas para além de nosso campo) que se espera que as esquerdas adotem, doravante, pesando, com análise crítica, nossa passagem pelo pleito eleitoral ainda não encerrado.
Como a unidade política se dá na ação, na prática, a mãe da política, na prática também se resolvem as questões colocadas pelo processo social, no qual a via eleitoral é uma das etapas. Ele indicará os meios adequados, as palavras de ordem mais justas, e ele próprio elegerá suas lideranças.
As condições atuais brasileiras nos dizem que a prioridade das forças progressistas, não só das esquerdas, é o enfrentamento ao bolsonarismo, o combate político e ideológico à extrema-direita, como ponto de partida para a restauração da via democrática plena, a recuperação dos direitos dos trabalhadores, a retomada do desenvolvimento e a restauração da soberania nacional. O ponto de partida, imediato, é o impeachment do presidente sociopata, conditio sine qua non para a salvação do país, primeiro passo da disputa política nas eleições de 2022
Peça nessa arquitetura é a conquista das prefeituras possíveis – e dentre todas se destaca a prefeitura de São Paulo, para, a partir delas, no imediato, fortalecer a campanha nacional pelo afastamento do capitão, preparando-nos para os embates políticos e eleitorais que se seguem, sem abandono da denúncia do capitalismo, sem medo de acusar a luta de classes ou defender o socialismo.
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