Via democrática é único caminho possível

Boris Fausto nos lembra que a Constituição da República de 1988 é o marco que pôs fim aos últimos vestígios do regime autoritário [1] que teve início com o golpe de 1964. Como bem lembrado pelo ministro Luís Roberto Barroso, "o movimento militar deflagrado em 31 de março de 1964, que derrubou o presidente João Goulart, tinha o compromisso declarado de manter as eleições presidenciais no ano seguinte. Não o cumpriu" [2].

Via democrática é único caminho possível

Com o fim do regime autoritário, sepultado pela nova Constituição, o Brasil renasce sob a proteção da cláusula democrática que encontrou guarida não somente no preâmbulo [3] constitucional, como também, a título de exemplo, em seu artigo 1º, quando afirma que "a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito", reconhecendo como princípios fundamentais "a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político" [4].

O postulado da cláusula democrática firmou um compromisso constitucional, um verdadeiro pacto intergeracional, uma auto-restrição em favor da democracia e, a toda evidência, do ordenamento infraconstitucional, que dali retira sua fonte de vida e validade, deve ser lida e compreendida nessa perspectiva.

No plano internacional, a democracia encontra alicerce na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em seu artigo XXI, item 3, prevê que "a vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos; e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto" [5]. Essa é a previsão do artigo 1 da Carta Democrática Interamericana, em que se estabelece que "os povos da América têm direito à democracia e seus governos têm a obrigação de promovê-la e defendê-la. A democracia é essencial para o desenvolvimento social, político e econômico dos povos das Américas" [6].

O postulado democrático constitui princípio fundamental e é inerente à estrutura do poder estatal da República Federativa do Brasil; no plano internacional, em especial da América Latina, a democracia é a base do Estado de Direito.

O professor Stephan Kirste [7], quando trata do direito humano fundamental à democracia, afirma:

"O direito humano fundamental à democracia, garantido por uma ordem jurídica nacional, supranacional ou internacional é, por consequência, a chave propriamente da concretização do potencial da liberdade da forma jurídica. Ela não se confronta com essa forma jurídica, mas a realiza. Os sujeitos de direito autônomos realizam sua liberdade na estrutura reflexiva do direito apenas, então, quando a criação de normas é expressão da liberdade. Essa chave não é, com certeza, um túmulo, mas muito mais um moinho que sempre tritura a naturalidade das novas normas e as transforma em normas jurídicas e, com isso, ela própria, repetidamente, sempre se renova. Também aqui o direito se une a uma vinculação futura com a possibilidade do futuro. O reconhecimento do direito humano fundamental à democracia é, igualmente, o reconhecimento de se esclarecer sempre e novamente os direitos humanos (VISMANN, 1996, p. 323.), o direito das pessoas de em si, desde sempre, se determinar no autocriado reino da liberdade" [8].

É um truísmo afirmar, portanto, que inexiste, seja em qual cenário for, qualquer possibilidade de retrocesso democrático.

Nos momentos de crise, em especial daquelas artificialmente criadas, torna-se ainda mais premente a necessidade de voltar os olhos para a Constituição da República, que, forjada no regime de transição para um novo país, delineia o caminho possível [9]. O caminho, como se constata, sempre decorre da via democrática e, em nenhuma hipótese, abre oportunidade para a ruptura.

Não é possível que iludidos com o canto da sereia [10] do autoritarismo, da paixão ocasional, da fraqueza que assola em momentos de dificuldade, do desrespeito com as instituições republicanas, a sociedade se lance em uma aventura antidemocrática, que só nos levará ao "fundo de um oceano sem fundo".

A Constituição da República é o mastro e o leme do navio de Ulisses, a que devemos nos prender com toda a força para a busca de uma solução democrática em tempos de mar revolto.

O único caminho possível é aquele decorrente da via democrática.


[1] FAUSTO, Boris; História do Brasil, p. 447.

[2] Tratado de Direito Constitucional – v. I, p. 11.

[3] Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (grifo do autor)

[4] "Artigo 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".

[5] https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=por

[6] http://www.oas.org/OASpage/port/Documents/Democractic_Charter.htm

[7] Professor catedrático de Filosofia do Direito e Filosofia Social na Universidade de Salzburgo.

[8] KIRSTE, Stephan. O direito humano fundamental à democracia. Revista Direitos Fundamentais Democracia, v. 20, n. 20, p. 5-38, jul/dez 2016.

[9] Vide, por exemplo, os artigos 51, 52, 136 e 137.

[10] ELSTER, Jon. Ulysses and the Sirens: Studies in Rationality and Irrationality.

Por Gerardo Humberto Alves Silva Junior