“Um segundo mandato de Bolsonaro é muito perigoso para a segurança climática”

“Um segundo mandato de Bolsonaro é muito perigoso para a segurança climática”

 


ENTREVISTA COM MARINA SILVA

“Um segundo mandato de Bolsonaro é muito perigoso para a segurança climática”

 

No Dia Internacional dos Direitos Humanos, Marina Silva nos relembra os marcos e retrocessos da política ambiental no Brasil e faz um panorama da COP26. A ex-ministra do Meio Ambiente destaca três fatores-chave que ameaçam à democracia e à segurança climática do Brasil: a constante protelação de responsabilidades, o atual modelo de desenvolvimento e o mandato do presidente Jair Bolsonaro

Os reflexos da última cúpula do clima, a COP26, ainda seguem ecoando em diferentes dimensões. Realizada nas duas primeiras semanas de novembro, retornamos de Glasgow com resoluções insuficientes e inquietudes permanentes sobre o cenário climático do Sul Global, em especial do Brasil. Entre dezenas de parlamentares e lideranças políticas brasileiras que estiveram presentes na conferência global da ONU, sentimos falta de um dos ícones mais importantes da política ambiental do nosso país. Por isso, a ex-ministra do Meio Ambiente, ex-senadora, professora e ativista socioambiental Marina Silva concedeu uma entrevista exclusiva ao Le Monde diplomatique Brasil diretamente da sua casa, em Brasília, sobre suas reflexões sobre a última COP. Desde 2003, esta foi a primeira COP que ela não esteve presente devido à situação atual da pandemia.

Durante a entrevista, a ex-ministra destaca e denuncia três fatores-chave que ameaçam gravemente à democracia e à segurança climática do Brasil: a constante sensação de protelação de responsabilidades, o atual modelo de desenvolvimento e o mandato do presidente Jair Bolsonaro. Sob uma ótica crítica em relação ao sistema que temos hoje, ela traz uma metáfora da Cama de Procusto para ilustrar o que estamos vivendo ambientalmente. A metáfora, que vem da mitologia grega, remete à história de um criminoso que hospedava viajantes em sua casa e tinha uma cama de ferro com uma espécie de tecnologia que, se o hóspede fosse muito alto, diminuía a cama para serrar a pessoa e, assim, alinhar os tamanhos. Já se a pessoa fosse pequena, ele ampliava a cama para poder esticar o indivíduo e, assim, também igualar o comprimento. Marina Silva compara esse reinado de terror com o nosso “nosso atual sistema no qual a humanidade vai se moldando às necessidades dele, e não às necessidades do problema que está posto e pode comprometer a vida se nós passarmos do ponto de não-retorno em relação ao aumento da temperatura”.

Durante a COP26, Joaquim Leite, atual ministro do Meio Ambiente, declarou que “onde existe floresta também existe pobreza”. A fala gerou repercussão negativa dentro e fora da conferência. O ministro terminou o discurso dizendo que “o futuro verde já começou”, quando na realidade temos evidências de recordes no índice de desmatamento na Amazônia, de acordo com o relatório do Inpe divulgado durante a cúpula do clima. O Brasil é um país marcado pelo racismo ambiental e pouquíssimos avanços no combate às mudanças climáticas. Na contramão da impunidade nos territórios e nas florestas, ouvimos Marina Silva.

Marina Silva na penúltima COP, em Madrid (Acervo pessoal)

Le Monde diplomatique Brasil – Depois de ter participado ativamente de tantas COPs, como foi acompanhar a última conferência a distância?

Marina Silva – Depois de ter participado de tantas COPs, em um tempo em que o Brasil liderava esforços no sentido de encontrar caminhos. Durante a minha gestão [à frente do Ministério do Meio Ambiente], fomos trabalhando muito para reverter a ideia de que, ainda que não tivéssemos emissões históricas significativas, deveríamos fazer de tudo para que o país em desenvolvimento pudesse assumir compromissos. Então, todo o nosso trabalho foi nessa direção de avançar na redução do desmatamento, pois conseguimos tornar o Brasil o primeiro país em desenvolvimento a assumir metas de redução no âmbito da cúpula do clima.  Acompanhando essa última COP, eu tive a sensação de que estamos vivendo um processo de protelação. A ciência está dizendo que não há mais tempo e é preciso, diante do diagnóstico, fazer as intervenções certas para diminuir a temperatura da terra e tomar providência para igualmente diminuir os impactos das ações dessa mudança já presentes na nossa vida hoje. Refiro-me aos eventos extremos que estão repercutindo na vida de países, regiões e comunidades. E, olhando para o tamanho do problema, a sensação que se tem é de protelação. Protelação.

Fazemos uma COP para identificar as medidas; depois uma COP para aprovar as medidas; depois a COP para regulamentar as medidas; e, por fim, viabilizar os recursos para tais medidas.  E vamos protelando. Parece que existe algo que não está se encaminhando de fato e todo mundo vai se adaptando – e aqui eu me refiro a “todo mundo” que deveria fazer algo sobre. A última COP26 foi muito interessante, pois tivemos uma participação enorme da sociedade e da comunidade científica, mas também de empresas e de alguns governos importantes, como o americano. Pela primeira vez, tivemos os Estados Unidos com uma agenda deliberadamente voltada para o Acordo de Paris, para redução de emissão, uma agenda de implementação interna mesmo com todas as dificuldades que eles têm. Então, tivemos uma presença forte de alguns governos, outros não, mas ao mesmo tempo todos entenderam que é preciso fazer. As empresas e os governos precisam fazer. E a sociedade há muito tempo vem procurando fazer a sua parte, a ciência está fazendo a sua parte. Porém, aqueles que agora estão repetindo enfaticamente o que era preciso fazer, não o fizeram suficientemente. E ainda que tivéssemos conseguido realizar todos os compromissos, e que estivessem todos implementados, mesmo assim, teríamos conseguido nos estabilizar em 1,5°C. Poderíamos chegar perto de 2°C, e isso não é suficiente.  A sensação é que temos uma forma de produzir, de consumir, a qual nos habituamos a aferir resultados desse modelo, desse sistema em que tudo vai se adaptando a fazer algo, mas desde que – digamos assim – seja adaptado a esse mesmo sistema.  A ciência já disse o que precisa ser feito, mas por que não é feito?

O sistema está fazendo modelagem e, de certa forma, moldando as ações políticas, os investimentos, uma série de coisas. Não faz sentido investirmos cerca de 4 a 6 trilhões em atividades que impactam negativamente o planeta e termos toda aquela dificuldade para viabilizar os R$100 milhões para ajudar os países vulneráveis que, além de fazer ações de mitigação, precisam fazer ações de adaptação para o impacto real das mudanças climáticas.

Temos um sistema no qual a humanidade vai se moldando às necessidades do sistema, e não às necessidades do problema que está posto e pode comprometer a vida se nós passarmos do ponto de não-retorno em relação ao aumento da temperatura.  Pensando no caso do Brasil, vimos uma COP26 em que chegamos em Glasgow em dois trilhos, eu diria.  Um trilho que está fazendo a sua parte da ciência, da sociedade civil, das comunidades indígenas, dos povos originários. E o outro trilho que é a negação de tudo isso, que é o governo federal. O desafio dessa última COP foi o de separar o trilho da sociedade do governo Bolsonaro. O trilho do governo que passará.  Eu espero que passe, porque senão será uma catástrofe. Já o trilho da sociedade ganhará, porque não ganhar é o impensável. Não temos como continuar destruindo a Amazônia.  O monitoramento que foi criado agora para as florestas, com base nos dados do Inpe, dá conta de que nos primeiros seis dias da COP26, o Brasil destruiu nove milhões de árvores nos primeiros dias da conferência. É por isso que esse governo precisa passar. E que a sociedade possa ganhar essa guerra de estarmos destruindo as condições que promovem e sustentam a vida. Não estamos destruindo só a nossa vida, como diz a Hannah Arendt, nós estamos destruindo as condições em que a vida nos foi dada, gerada e produzida. Isso seria o impensável que a sociedade já tem consciência de que não pode continuar. É por isso que os jovens se atiram diante do perigo. É a primeira vez na história da humanidade que essa nova geração (crianças, adolescentes e jovens) é que se atiram diante do perigo. Historicamente, somos nós que geralmente nos colocamos na frente das nossas crianças. Pela primeira vez são as crianças que estão se jogando na frente daquilo de errado que fizemos pra dizer que a vida busca vida. A vida é insistência.

Marina Silva no Acampamento Terra Livre de 2018 (Crédito Léo Cabral/Flickr)

Como foi acompanhar de longe esse novo cenário potente de uma delegação brasileira jovem, com representantes em peso do movimento negro e indígena? Vimos um grito muito alto que ecoou que os nossos corpos e nossas vozes importavam, ainda que esse grito não tenha tido a força de chegar às negociações em uma COP tão difícil. 

É uma força muito grande, porque ela tem duplo sentido. Primeiro, não confundam o Brasil com o governo federal.  Nós estamos aqui e nós somos o Brasil. O governo não é o Brasil, certo? O outro sentido é que estamos fazendo tudo que é possível, o que envolve ciência, juventudes, movimento negro, os povos indígenas – não por acaso a nossa voz oficialmente. Digamos que em um momento crucial da fala oficial do Brasil, não houve a presença do governo. Quem estava lá era a Txai Suruí. Isso é muito, muito simbólico. Quem tem a prerrogativa da continuidade da vida, do novo ciclo de prosperidade e que não seja para acúmulo de mais riqueza, nem prejuízo do meio ambiente e de muitos que ficam à margem dessa criação de geração de riqueza estava lá.

Foi uma COP dos dois trilhos – com a força da sociedade.  Ainda que essas vozes não cheguem diretamente nas negociações climáticas, mas o que vai fazer a diferença para além das negociações são as ações no âmbito de cada Estado e cada localidade. Então, essa presença, essa força, ela não chega nas negociações, mas ela pode chegar nas ações. Se cada país que tem essa força, traduzir em ações, dizendo para as empresas que não querem produtos poluentes, que foram produzidos a partir de emissão de CO2, de destruição de florestas, de violência contra povos indígenas, contra pretos e contra aquilo que seria esse ciclo prosperidade, que combate desigualdade, que combate destruição ambiental. Se todas essas denúncias virarem ações, veremos mudanças. Quem dá o tempo de referência é a sociedade, tanto para os governos quanto para as empresas. Não por acaso, o governo Bolsonaro mudou de posição por pressão internacional e por pressão interna, inclusive de parte do empresariado que se fez presente na COP26.

No Brasil, a prerrogativa mais forte de ação que nós temos é de natureza política. De não permitir que o governo Bolsonaro tenha um segundo mandato. Um segundo mandato do Bolsonaro é muito perigoso para o equilíbrio e a segurança climática do planeta e, particularmente, a nossa.  Já estamos vivendo sob o efeito da crise hídrica, sob o efeito das mudanças climáticas, crise energética e outros eventos extremos no Brasil.  E nós somos um país de alto risco climático. Em nosso caso, afeta comunidades, regiões, a nossa própria economia e a América do Sul. Segundo o cientista Carlos Nobre, 70% do Produto Interno Bruto (PIB) da América do Sul depende das chuvas geradas pela Amazônia. Tudo isso para novamente reforçar que essa força não chega nas negociações, mas pode chegar nas ações. Inclusive, a ação política de fazer com que esse tema seja importante nas eleições. Participei de três eleições, e na maioria delas, os candidatos, os partidos e os governos tratavam essas questões como um capítulo isolado, escondido e não ganhava nem visibilidade – com exceção da minha campanha que sempre teve esse compromisso com a agenda da sustentabilidade. Quando, enfim, vinha à tona, eles faziam questão de dizer: “Nós vamos fazer isso. Ah! Mas isso não é ambientalismo romântico, isso não é eco-terrorismo”. Uma série de desculpas para não desagradar o agronegócio e também a indústria que não tinha compromisso com essa agenda. Hoje, quem assume a prerrogativa é a sociedade para dizer que esta é uma questão importante e base. Não é uma coisa de direita ou de esquerda. É questão de sobrevivência da vida no planeta e com ela a sobrevivência da própria espécie humana.

Uma outra observação sobre a COP26 foi a percepção da apatia do espaço do governo federal e a efervescência do Brazil Climate Action Hub. É como se a crise política que vivemos atualmente no Brasil também foi ilustrada na COP, se compararmos a morbidade do espaço do governo com o da sociedade civil brasileira.

Foi mais uma ausência. Como se trata de um governo que é ausente em política ambiental, é ausente em respeito aos direitos humanos e em tudo o que é civilização e considerando que o Brazil Climate Action Hub foi um espaço para definir os rumos da humanidade, o espaço do governo estava vazio porque nesses assuntos ele realmente é vazio. O espaço da sociedade civil estava cheio e transbordante porque foi de lá que veio a esperança.

E o que esperar da COP27, que será sediada no Egito? Em relação ao que podemos ter expectativa, tanto na dimensão nacional e internacional, e realmente sonhar?

Para mim, espero que saiamos dos enunciados para a implementação. Que no caso do Brasil, a gente consiga reeditar aquilo que já foi feito, por exemplo, o Plano de Ação para Prevenção e Controle de Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). E que possamos nos presentificar com a melhor parte da solução em investimento de energia limpa e renovável, em agricultura de baixo carbono, em zerar desmatamento, em proteção aos povos originários, na busca de equidade social, a partir de um novo ciclo de prosperidade com base na bioeconomia. O que eu espero da próxima COP27 é que não tenha mais manobras protelatórias. Nós ficamos diante da própria impotência do “fazer” na última COP. É preciso de um encontro de compromissos, de metas, de objetivos em relação às Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) e vamos ajustar tudo isso de acordo com as necessidades não do sistema, mas da preservação das condições que asseguram a continuidade na vida no planeta.

 

Andréia Coutinho Louback é jornalista pela PUC-Rio, mestre em Relações Étnico Raciais pelo CEFET/RJ e especialista em justiça climática. Atualmente, ela é fellow do programa de aperfeiçoamento profissional da Fulbright chamado Humphrey Fellowship (2021-22), na Universidade da Califórnia Davis. Já trabalhou como coordenadora de comunicação no Instituto Clima e Sociedade e também no projeto Justiça Climática e Socioambiental do Instituto Alana. Entre seus principais temas de atuação e paixão, estão: justiça climática e socioambiental, urbanização inclusiva e desigualdades raciais. Durante a COP26, em Glasgow, Andréia produziu matérias exclusivas para o Le Monde diplomatique Brasil, financiada pelo Consulado da Irlanda.