Hesitação na guerra na Ucrânia abala reputação de Berlim

Alemanha enfrenta crise generalizada de credibilidade desde a invasão da Ucrânia.

Hesitação na guerra na Ucrânia abala reputação de Berlim

Hesitação na guerra na Ucrânia abala reputação de Berlim

Hesitação na guerra na Ucrânia abala reputação de Berlim

 

 

Alemanha enfrenta crise generalizada de credibilidade desde a invasão da Ucrânia.

Visto como dono de fortes laços com a Rússia, país toma rumo oscilante. Parte do problema é a autoimagem alemã do pós-guerra.Um ano atrás, encerrava-se o mandato de Angela Merkel como chanceler federal da Alemanha. Na despedida, seus colegas políticos não pouparam elogios, classificando-a como a principal figura de liderança da União Europeia e uma das mais importantes do Ocidente. O presidente do Conselho da Europa, Charles Michel, a louvou como nada menos do que “um monumento” e “uma figura de luz de nosso projeto europeu”.

Em seus 16 anos de governo, contudo, a democrata-cristã também foi corresponsável por impedir a filiação da Ucrânia à Otan, assim como por autorizar o gasoduto Nord Stream 2, ligando a Rússia à Alemanha pelo Mar Báltico – pouco depois de Moscou ocupar a península ucraniana da Crimeia. Na despedida solene, contudo, poucos atentaram para esses fatos.


 

Em 24 de fevereiro de 2022, a ministra do Exterior alemã, Annalena Baerbock, declarou: “Nós acordamos num outro mundo.” A invasão da Ucrânia pelas tropas russas não só colocou de cabeça para baixo a ordem pós-guerra da Europa, mas também a avaliação da política alemã para a Rússia.

No começo de abril, diante das imagens dos cadáveres de Bucha, o presidente Volodimir Zelenski convidou Merkel a visitar esse subúrbio de Kiev, a fim de formar uma ideia de “a que levou a política de concessões à Rússia, em 14 anos”.

Em entrevista recente à DW, o autor ucraniano Andrey Kurkov comentou ter percebido “muitas emoções antigermânicas” em seu país, e “Angela Merkel é abertamente citada como a culpada”. Acusações semelhantes também partem da Polônia e do Báltico, e não visam apenas a veterana conservadora, mas toda uma geração de políticos alemães que apostou na “mudança através do comércio”.

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“Mudança de paradigma”, mas não tanto assim

O ex-ministro do Exterior e atual presidente Frank-Walter Steinmeier já admitiu “erros de avaliação” que custaram muita credibilidade à Alemanha. Tanto no país quanto no exterior, condena-se como escandaloso sobretudo o papel de seu camarada social-democrata Gerhard Schröder: um ex-chanceler federal que até hoje se recusa a distanciar-se do presidente russo, Vladimir Putin.

 

Quando a invasão russa da Ucrânia começou, o atual chefe de governo, Olaf Scholz, anunciou no parlamento federal uma zeitenwende, uma “mudança de paradigma”. Por outro lado, advertiu contra uma terceira guerra mundial, hesitou em fornecer armas à Ucrânia e em decretar um boicote abrangente do gás e petróleo russos.

Por isso, nem todo mundo engoliu a “mudança de paradigma” do chanceler federal: seu homólogo polonês, Mateusz Morawiecki, o acusou de continuar bloqueando sanções mais decididas por parte da UE.

Tem havido outros sinais de um desgaste de prestígio: no começo de abril, realizaram-se protestos diante da embaixada da alemã na capital lituana, Vílnius, por Berlim não ter apoiado o embargo total à energia russa.

Nos Estados bálticos, as relações estreitas com o Kremlin nunca foram vistas com bons olhos, pois os habitantes da Estônia, Letônia e Lituânia temiam se tornar as próximas vítimas de Putin.

O jornal tcheco Lidove noviny classificou como “defensiva” a posição de Scholz: na questão do fornecimento de armas à Ucrânia, sua atitude seria de “'sim, mas…', má comunicação e opiniões vacilantes”.

O especialista em Leste Europeu Volker Weichsel alerta que essa reserva do político social-democrata não é benéfica nem mesmo perante Moscou: “É equivocada a suposição de que o assim chamado 'comedimento' tenha efeito positivo na percepção da Alemanha na Rússia. Muito pelo contrário: antes, a propaganda de Moscou apresentava exageradamente o país como amigo; e agora, de modo igualmente exagerado, como inimigo”, explicou à DW.

Perda de reputação até no Eurovision

Henning Hoff, da Associação Alemã de Política Externa (DGAP), detecta “desconfiança”, sobretudo entre poloneses e bálticos, de que “no fim das contas, Berlim quer mesmo é negociar alguma coisa com Moscou, por cima de todas as cabeças”. Trata-se de reminiscências, ainda muito presentes nos países afetados, do pacto de 1939 entre o nazista Adolf Hitler e o soviético Josef Stalin, em que as duas ditaduras dividiram o Leste Europeu entre si.

Outros europeus também criticam a hesitação da Alemanha quanto ao fornecimento de armas, o embargo energético e uma futura filiação da Ucrânia, registra Volker Weichsel: “Da Alemanha, espera-se liderança na União Europeia. Mas, independente de que questão da política para Rússia e Ucrânia se trate, o governo sempre reagiu atrasado e só sob pressão externa.”

No tocante aos armamentos, o embaixador ucraniano na Alemanha Andriy Melnyk chegou a expressar a suspeita de que “o chanceler federal não quer fornecer”: “Dá para ter a impressão de que se está esperando até haver um cessar-fogo. Aí acaba a pressão sobre a Alemanha, e não é mais preciso tomar decisões corajosas”, comentou à rede jornalística Redaktionsnetzwerk Deutschland.

Os danos à imagem do país se manifestaram também em outro campo totalmente diferente: talvez o festival da canção Eurovision nunca tenha sido tão político como em 2022, como se esperava, o público deu notas máximas aos candidatos da Ucrânia, a banda Kalush Orchestra. Porém o último lugar também foi político, e quem ficou com ele foi a Alemanha.

Alemanha deve reconsiderar seu papel na paz mundial

Onde Berlim perde prestígio, outros podem sair ganhando. Já se viram primeiros indícios nesse sentido na terça-feira (17/05), quando Zelenski conversou ao telefone tanto com Scholz quanto com Emmanuel Macron.

Enquanto descreveu, um tanto desconsolado, a conversa com o político alemão como “bastante produtiva”, para o chefe de Estado ucraniano a com seu homólogo francês foi “substancial e longa”. Um dos assuntos foi o desejo de Kiev de se filiar rapidamente à UE.

Ainda assim, Henning Hoff não crê que Macron ascenderá a nova figura de liderança do bloco, pois “a desconfiança em relação à França também é grande”, desde que, “sem combinação prévia com os países do Centro e Leste da Europa, em 2019, Macron buscou um 'diálogo estratégico' com Putin”. No geral, não se pode deixar a política europeia a cargo da Alemanha e/ou da França, frisa o especialista da DGAP: “Os europeus do Centro e Leste, sobretudo os bálticos e poloneses, precisam ser muito bem escutados.”

Segundo Weichsel, há três iniciativas que Berlim poderia tomar, a fim de melhorar sua reputação: “Apoiar com toda força a solicitação da Ucrânia do status de candidata à UE; um apoio consequente aos esforços de defesa do país”; e por fim, como “tarefa hercúlea, uma guinada energética rápida e bem-sucedida”. “A perda de prestígio das últimas semanas será logo esquecida se a Alemanha demonstrar que tem um modelo com futuro”, prediz.

Numa alusão à política de entendimento do chanceler federal Willy Brandt na década de 1970, Hoff aconselha uma espécie de nova política para o Leste, “em primeiro lugar direcionada aos vizinhos próximos da Alemanha e seus parceiros na UE e Otan; e só num segundo estágio a uma Rússia – espera-se, em breve – pós-putinista”: Resumindo: só se reconquistará confiança através de uma europeização verdadeira da política para a Rússia.”

Volker Weichsel faz uma ressalva, porém: para além da política, é preciso uma nova autoimagem alemã. “Durante 70 anos, a sociedade alemã acreditou que poderia eliminar a guerra do mundo, apenas não se tornando, ela própria, novamente agressora. A noção de que alguém outro poderia ser o atacante e que seria preciso acudir uma vítima concretamente com armas, em vez de apenas ficar se desculpando pelas próprias ações do passado, para amplas parcelas de sociedade alemã, isso era impensável. E esse processo de repensar está apenas começando.”