TODO O PRIMEIRO SEMESTRE SERÁ MUITO DURO PARA O BRASIL, APONTA PROFESSOR DE MEDICINA DA USP

" O primeiro semestre todo será muito duro.”

TODO O PRIMEIRO SEMESTRE SERÁ MUITO DURO PARA O BRASIL, APONTA PROFESSOR DE MEDICINA DA USP

TODO O PRIMEIRO SEMESTRE SERÁ MUITO DURO PARA O BRASIL, APONTA PROFESSOR DE MEDICINA DA USP

REMELEXO DA NOTÍCIA

 

“Estamos numa situação muito grave na pandemia. Apesar das medidas adotadas em alguns estados, nós não teremos ainda, porque o ritmo de vacinação está muito lento e porque as restrições são parciais, são desestimuladas com frequência pelos governantes –especialmente o federal–, não teremos ainda uma queda significativa no número de infectados no Brasil. Isso significa que nós teremos ainda de atravessar um mês de abril muito duro. O primeiro semestre todo será muito duro.”

Essa é avaliação do médico pneumologista Ubiratan de Paula Santos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e presidente do Conselho Superior da Sociologia e Política – Escola de Humanidades (FESPSP). Em entrevista ao TUTAMÉIA, ela fala sobre a situação que vive em seu consultório, comenta mudança de posição da categoria médica sobre o governo federal e aponta quem considera o principal responsável pela disseminação da pandemia no país na proporção que vivemos:

“Aqui o presidente da República se tornou um sócio do coronavírus. Ele abraçou o coronavírus e resolveu ajudar a disseminá-lo. Ele é o principal responsável, sem dúvida, porque criou dificuldades para governadores das mais diversas posições políticas conseguirem aplicar suas melhores restrições em âmbito local. Considerando o sistema de saúde que temos, não tenho dúvidas de que mais da metade das mortes e dos casos decorre da falta de uma política nacional de combate à pandemia.”

O médico também constata a existência de política de subnotificação de mortes –o número real deve ser maior do que as estatísticas registram, diz ele (clique no vídeo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV): “No terreno da mortalidade existem também problemas. Vendo parcelas significativas de municípios e secretarias de Saúde do Brasil, baseados no comportamento da presidência da República, na inação do ministério da Saúde até então, há políticas deliberadas de desassociar os óbitos da causa da covid”.

Fala ainda sobre o drama vivido por médicos que, por falta de recursos dos hospitais em que atuam, são obrigados a escolher quem vai ser internado em UTI ou receber tal ou qual tratamento. E propõe um levante da categoria: “Quando essa decisão, quando ela se impuser, nós temos de ter uma rebelião. Quando se exige que a direção participe desse processo, você aumenta a capacidade de pressão de cada hospital para discutir esse assunto com o governo federal, com os estados e os municípios. Deixar isso por conta do médico do pronto-socorro, isoladamente, é um equívoco”.

Não deixa de criticar médicos que, apesar de todo o conhecimento disponível, continuam receitando o chamado kit covid e o tratamento precoce: “É erro médico. Devem ser responsabilizados civil e criminalmente, com todos os procedimentos possíveis na lei, porque isso tem de ser coibido”.

Confira a seguir trecho da entrevista, divididos por tema.

SETENTA POR CENTO DE EXCESSO DE MORTALIDADE

No mês de março, o Brasil foi um dos países do mundo com maior percentagem de excesso de mortalidade por todas as causas, em relação a anos anteriores. Se comparar março de 2021 com a média histórica, nós hoje temos setenta por cento a mais. E não é só por conta da covid 19. A Grã-Bretanha, por exemplo, que teve um número alto de mortes por covid, não tem esse desbalanço no excesso de mortalidade por todas as causas. Isso porque nós temos um país muito desigual, há um componente de violência doméstica e violência urbana, temos problemas de fome, de sobrevivência. Além disso, uma parte das pessoas que têm alta, principalmente as que ficaram em UTI, uma parte vai a óbito porque não recebe uma assistência pós alta adequada.

Há um agravante porque, por causa da covid, foram represadas consultas para outras doenças, controles de doenças crônicas, monitoramento preventivo de alguns cânceres, tanto no sistema público quanto no privado. Por exemplo: na semana passada, no Hospital das Clínicas, a demanda do sistema Cross, que é o sistema que encaminha pedidos de internação, foi enorme. Na sexta-feira passada, 300 solicitações de internação da covid e número igual parta outras doenças;

Isso significa que nós teremos ainda de atravessar um mês de abril muito duro. O primeiro semestre todo será muito duro. A vacinação avança num ritmo muito lento. Temos 21 milhões de brasileiros vacinados, estamos vacinando em média 500 mil pessoas por dia, quando nós podemos vacinar 2 milhões e meio de pessoas por dia pelo SUS, é a capacidade do SUS. Até agora, infelizmente, nós aproveitamos mal a nossa potencialidade.

O Brasil tem hoje de 70 mil pessoas a 100 mil pessoas se infectando a cada dia. É um grande laboratório, infelizmente, para estudar vacinas, e um grande laboratório natural para o vírus se multiplicar aos quatrilhões de vezes por dia e, com isso, gerar possibilidade de novas mutações. A maior parte das mutações são mais fracas, mas algumas delas o tornam mais agressivo.

SUBNOTIFICAÇÃO DELIBERADA DE MORTES

Subnotificação de casos existe. No Brasil, só são testadas pessoas que estão sintomáticas e aquelas que procuram. Não há uma busca ativa para testar. Temos um problema de notificação por falta de testes, de confirmação de diagnóstico. Há uma confusão, uma falta de padronização, uma falta de orientação [por parte das autoridades], uma falta de apoio, que ajude não só a melhorar a qualidade dos registros como também para acompanhar a população e evitar a propagação de novos casos.

No terreno da mortalidade, existem também problemas. Vendo parcelas significativas de municípios e secretarias de Saúde do Brasil, baseados no comportamento da presidência da República, na inação do ministério da Saúde até então, há políticas deliberadas de desassociar os óbitos da causa da covid. Esse excesso de mortalidade de 70% por todas as causas no Brasil –incluindo, claro, síndrome respiratória grave—mostra que provavelmente há subnotificação das mortes e do número de casos.

REVOLTA DOS MÉDICOS

O colapso hospitalar permanece. É variável entre os Estados, os municípios, entre hospitais. Não se pode trabalhar numa pandemia como essa, que tem essa agressividade viral, com o conceito de taxa de lotação em UTI. No Brasil, quem é internado em UTI, a média nacional é que 40% a 50% vão a óbito e, entre os intubados, 60% a 80% morrem. Não posso usar esse critério, então para abertura da economia, como governadores e prefeitos estão usando. Esse critério serve de referência para não deixar de atender pessoas que estão graves, mas não para afrouxar regras de isolamento ou abrandar medidas restritivas.

Os hospitais estão lotados. Na média, há falta de equipamentos adequados. A doença nasce global, se interiorizou no país todo, no estado de São Paulo temos cidades médias e grandes em que as UTIs estão lotadas, há um estresse muito grande no profissional de saúde que tem de decidir quem entra na UTI e quem não entra. Depois, na UTI, vai ter de decidir aqueles que intuba, aqueles que não intuba, aqueles que terão alta precocemente… É uma decisão difícil e, quando isso vira rotina, imagine como fica a cabeça dos profissionais de saúde: ou eles banalizem ou entram em crise.  Não sabemos como esses profissionais vão se comportar ao longo dos próximos anos.

Nós, os médicos, temos de nos rebelar contra esse estado de coisas, de ter de tomar essa decisão. Essa decisão, dentro de cada serviço, não pode ficar sob a batuta exclusiva do médico que está atendendo. A direção do hospital, a diretoria clínica dos hospitais do hospital, tem de haver um compartilhamento disso. Quando essa decisão, quando ela se impuser, nós temos de ter uma rebelião. Quando se exige que a direção participe desse processo, você aumenta a capacidade de pressão de cada hospital para discutir esse assunto com o governo federal, com os estados e os municípios. Deixar isso por conta do médico do pronto-socorro, isoladamente, é um equívoco.

KIT COVID

Kit covid é muito prescrito por médicos aqui de São Paulo, gostam desse tratamento de uma maneira incompreensível. Pegamos muitas receitas, prescrições muito padrão, já impressas, eles só carimbam. Isso representa uma certa falência das universidades. As faculdades de medicina perderam a corrida e se desconectaram com a população e com a realidade, e com os médicos que elas formaram, para que haja médicos que façam isso.

Até o Conselho Federal de Medicina se mete em questão de prescrição. O Conselho serve a muito pouco.

A prescrição do kit covid, hoje, configura erro médico. E acho que devemos responsabilizá-los. Não apenas exigir que os conselhos tomem medidas como exigir das secretarias de saúde de estados e municípios –isso não é facilitado porque o governo federal não ajuda nisso—que isso não seja utilizado na rede atenção pública, no SUS. Eles são funcionários do país, são funcionários públicos, não devem ter esse comportamento. E mesmo os que fazem prescrição privadas devem ser responsabilizados civil e criminalmente, com todos os procedimentos possíveis na lei, porque isso tem de ser coibido.

Vários grupos de médicos temos nos manifestado contra isso, eu mesmo acompanho a ação de um colega cardiologista que entrou com ação contra o Conselho Federal de Medicina por conta desse tipo de aceitação desse kit na prática médica. Nós médicos devemos interpor ações jurídicas, com apoio de advogados, porque vai ajudar a inibir esse tipo de comportamento.

Além disso, quem faz esse tipo de prescrição são profissionais que tendem a fazer prescrições, fora da covid, também pouco adequadas. Não é infrequente nós pegarmos receitas, trazidas por pacientes, que não têm nenhuma relação com a doença que a pessoa tem. Têm mais relação com a farmácia próxima ao consultório ou ao bairro onde o médico mora, porque ele recebe bônus, viagens para congresso internacionais ou outros mimos. Nesse caso da covid, isso ficou muito escancarado. Também muita motivação política, ideológica, associação com a figura do presidente da República que faz lives e aparecimento em programas com a caixinha do medicamento. É uma coisa nunca vista, eu não me lembro. Tenho sessenta e nove anos, nunca vi isso. Presidente, autoridades, governo com esse descaramento, é uma coisa complicada.

MUDANÇA DE POSIÇÃO DOS MÉDICOS

A impressão que tenho é que houve um distanciamento progressivo dos médicos, um distanciamento que aumenta a cada tempo, das posições do presidente da República no comando, no controle das políticas ou da falta de política em relação à pandemia. Especialmente no que se refere a esses medicamentos e também a outras medidas de prevenção que ele desestimulava ou desestimula ainda. Desestimulou o uso de máscaras. Eu concordo muito com o estudo da professora Deisy Ventura, da Faculdade de Saúde Pública, que é provável que tenha havido uma estratégia, pelo conjunto de atos do governo federal, de que a população deveria ser vacinada naturalmente pelo vírus, mesmo que morresse muita gente.

Mas ainda há uma porcentagem dos médicos  –mesmo que seja 20%, são dezenas de milhares–, que preferem a política do presidente. É uma situação ainda preocupante, porque essas pessoas, além de piorar o tratamento das pessoas que estão com covid, acabam ajudando a difundir essas ideias para a população leiga.

As secretarias de saúde dos estados e municípios não têm numa postura firme sobre isso.

Há uma mudança de postura da categoria médica, acredito que em sua maioria. A nova diretoria da Associação Médica Brasileira, o CRM de São Paulo modificou um pouco a sua postura, mas no RS, a Câmara de Vereadores de Porto Alegre aprovou usar o tratamento preventivo (que não existe)! O Legislativo se mete no assunto, da mesma maneira que juízes. É uma situação lamentável. As medidas sanitárias não podem ficar ao sabor de decisões judiciais dessa maneira. Isso tudo ocorre porque não tem um comando nacional.

COMPRA DE VACINAS POR EMPRESA
É uma operação política de tentar ganhar os seus funcionários. Eles sabem que não tem vacina, sabem que não vai prosperar isso. É uma política de busca da hegemonia do patrão, da empresa, deixa os sindicatos acuados. É uma estratégia volta para divulgar essa ideia de que os trabalhadores são colaboradores do dono da empresa.

RESPONSABILIDADE DE BOLSONARO

O ocidente, o mundo capitalista inteiro está mal na fita no combate à pandemia. A redução progressiva do estado de bem estar social, ou seja, de políticas para melhorar a atenção à saúde das pessoas, de políticas públicas, e também a subordinação desses países à economia levaram esses países a terem taxas de óbito por Covid muito elevadas. O que há de diferente é que eles não têm, em geral, presidente fazendo discursos como o daqui –nem o Trump fazia como esse nossos fez, de desprezar a pandemia e as medidas necessárias para seu controle. Esses outros países estão botando a mão no bolso, dando auxílio emergencial significativo. O mundo capitalista se comportou mal: depois de um ano, deixar repicar a pandemia a partir de outubro, novembro ou dezembro, é uma demonstração de falta de estratégia, de compromisso com a vida também naqueles países.

Aqui o que houve é isso de maneira exacerbada. Aqui o presidente da República se tornou um sócio do coronavírus. Ele abraçou o coronavírus e resolveu ajudar a disseminá-los. Nós, com o sistema de saúde pública que temos, se ele tivesse, com o ministério da Saúde, organizado um programa nacional, definisse a estratégia de combate… Primeiro, isolar as cidades onde começou, no ano passado, São Paulo, Fortaleza, Manaus, isolar, ninguém sai, ninguém entra. Para fazer isso precisa de apoio federal.

Ele é o principal responsável, sem dúvida, porque criou dificuldades para governadores das mais diversas posições políticas conseguirem aplicar suas melhores restrições em âmbito local. Ainda que vários governadores tenham sucumbido, precipitadamente ou de maneira inadequada, às pressões locais de comércio e indústria. Não houve política de enfrentamento, mesmo com o risco da perda de prestígio. Nessa situação de calamidade, onde morrem de 3.000 pessoas a 4.000 pessoas por dia, nesses dias não resta outra alternativa senão os políticos terem uma posição grandiosa, arriscar mais para implantar políticas adequadas.

Considerando o sistema de saúde que temos, não tenho dúvidas de que mais da metade das mortes e dos casos decorre da falta de uma política nacional.

É de Bolsonaro a responsabilidade principal. Ele vai ser responsabilizado politicamente por isso, talvez judicialmente, porque as medidas e a postura dele se confrontam com o que diz não só a OMS como também o conjunto de artigos publicados em revistas médicas orientando sobre as melhores práticas conhecidas até o momento.