O País de Paulo Freire e Darcy Ribeiro

O País de Paulo Freire e Darcy Ribeiro

 

O País de Paulo Freire e Darcy Ribeiro

MILTON RONDÓ

Carta Capital

Paulo Freire e Darcy Ribeiro. Imagens: Wikipedia/Creative Commons e Manoel DiasPAULO FREIRE E DARCY RIBEIRO. IMAGENS: WIKIPEDIA/CREATIVE COMMONS E MANOEL DIAS

 

‘Só vejo a nós para a tarefa urgente de humanizar nossa civilização e orienta-los por caminhos solidários que livrem os homens do medo’

Os brasileiros e brasileiras, vivos e até mortos, assistimos, na semana passada, a cenas de subserviência explícita, impróprias para pessoas de qualquer idade: o secretário de estado estadunidense foi recebido pelo chanceler ilegítimo do Brasil, em Boa Vista, para juntos tocarem tambores de guerra.

Vale lembrar que, nos governos Lula e Dilma, Boa Vista foi escala importantíssima dos voos de cooperação humanitária brasileira, para atender populações atingidas por desastres socioambientais na América Central e no Caribe, principalmente no Haiti, após o terremoto de janeiro de 2010, que vitimou mais de 300.000 pessoas e deixou mais de outras 300.000, feridas e desabrigadas naquele país.

De novo, Bolnonaro e seus generais de fancaria violaram o solo pátrio e a constituição nacional, que, em seu artigo 4, estabelece que a diplomacia brasileira deve reger-se pela independência; pela não-intervenção; pela defesa da paz; pela solução pacífica de conflitos e pela integração latino-americana.

Como bem assinalaram os ex-chanceleres brasileiros em carta conjunta, Bolsonaro e os cúmplices dele descumpriram a constituição, mais uma vez, devendo por isso serem responsabilizados.

Uma vez que ao Supremo Tribunal Federal cabe a defesa da constituição, fica a pergunta: que atitude tomará aquela corte?

Como chegamos os brasileiros e brasileiras a um ponto tão baixo de nossas relações exteriores?

Amílcar Cabral, libertador da Guiné-Bissau e de Cabo Verde do jugo colonial, disse, de forma lapidar, que a libertação nacional: “é necessariamente um ato de cultura”.

O jurista Pedro Serrano, em entrevista a Mino Carta, recentemente publicada na Carta Capital, corrigiu a cobrança corriqueira sobre o PT, por não ter politizado o povo, razão pela qual afundamos na atual cloaca política.

Para Serrano, entretanto, mais correto seria ter buscado a “humanização” popular.

Ratificando aquela posição do jurista e conciliando-a com a visão profética de Amílcar Cabral, talvez se possa idealmente almejar a “cultivação” popular, em que a cultura assume o centro do fazer político, como propugnaram Antonio Gramsci e Rosa Luxemburgo.

Vale recordar que também na semana passada iniciaram-se as comemorações do centenário de Paulo Freire, que completaria 100 anos, em 2021.

Para o grande pedagogo e patrono da educação brasileira, só o conhecimento libertador poderia levar homens e mulheres à liberdade.

A propósito, ao vivermos este verdadeiro bordel administrativo e diplomático, com uma pandemia descontrolada, à qual se somam os incêndios da Amazônia e do Pantanal, além da invasão indiscriminada de terras indígenas, convém recordar as palavras de outro titã da educação nacional, Darcy Ribeiro, ex-ministro da educação e primeiro reitor da Universidade de Brasília, no governo do presidente João Goulart, deposto no golpe militar de 1964. Em “América Latina: a Pátria Grande”, editado pela UnB, ilustra-nos aquele pensador sobre os dias de ontem e hoje: “Ditadores tropicais sanguinários, como Somoza, Trujillo e Batista, são criaturas que Washington criou, amestrou e nos impôs para perpetuar o domínio ianque sobre as ‘repúblicas de bananas’ que mantêm no Caribe. Elas são a expressão política natural e necessária da apropriação das terras pelas empresas norte-americanas produtoras de frutas de exportação. Se você duvida, olhe um pouco para a Nicarágua, El Salvador e a Guatemala e se pergunte quem é que quer reter a lucrativa tradição bananeira? Quem é que cria, ceva e perpetua ditaduras no Caribe?”.

Responde o próprio autor, de maneira tristemente atual para o Brasil e a Bolívia: “As novas ditaduras militares do Brasil, da Bolívia, do Chile e da Argentina são também criações norte-americanas. São o correspondente político inevitável do domínio de nossa economia pelas corporações transnacionais, que, não podendo ser legitimado pelo voto popular, tem de ser imposto pela mão de governos militares”.

“A ideia de uma América Latina da siesta e da fiesta, do machismo, dos ditadores vocacionais, da sombra e água fresca e de uma indolência doentia tem a mesma função do racismo. É escamotear a realidade da dominação colonial e classista” (Darcy Ribeiro)

Conclui acertadamente o professor: “Cada uma delas nos foi imposta através de movimentos programados cuidadosamente em Washington – com a ativa participação internacional – de desestabilização de governos democráticos e progressistas, seguidos da apropriação do poder através de golpes militares ianquizados. Uma vez implantada a nova ordem, seus mandantes atenderam solícitos a voz do amo. Redefiniram toda a política salarial para anular as conquistas sociais dos trabalhadores e impor regimes de medo e de fome. Logo após, com o mesmo denodo, revogaram por decreto a legislação de defesa dos interesses nacionais, para que as empresas multinacionais se apropriassem de nossos recursos e mercados. Em consequência, nos converteram em exportadores de capitais que mandam para fora os lucros cada vez maiores”.

De forma profética, Darcy Ribeiro previu até o internacionalismo da diplomacia médica cubana, que salvaria milhares de vidas por todo o mundo, durante a pandemia: “Importante mesmo, belo até, é o papel internacional que Cuba hoje desempenha. Incontestavelmente muito mais importante do que o de toda a América Latina junta”.

Conclui o visionário Darcy, com otimismo que se cumpriria de fato e que nos cabe resgatar das mãos impostoras dos que nos arrebataram a democracia em 2016: “Imagine comigo, leitor, o que será no ano 2000 uma América Latina que valha cinquenta Cubas de poderio e garra como presença calorosa neste mundo necessitado de ousadias libertárias. Não é impossível nem que o Terceiro Mundo vire o primeiro…frente a tudo isso, só vejo a nós para a tarefa urgente de humanizar nossa civilização e orienta-los por caminhos solidários que livrem os homens do medo e lhes devolvam a alegria de viver”.

Portanto, ficam avisados fascistas e imperialistas: um país que tem Paulo Freire e Darcy Ribeiro, uma vez enterrado, brotará.